
O Rio Grande do Norte contabilizou 1.943 processos relacionados a falhas na prestação de serviços de saúde até setembro de 2025, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O dado expõe uma realidade preocupante: o aumento expressivo da judicialização no setor.
Em todo o Brasil, foram registradas 72.247 novas ações judiciais nos primeiros nove meses do ano por danos materiais e morais ligados à saúde. No estado, o tempo médio de julgamento é de 373 dias, com casos que ultrapassam 600 dias de espera.
Falta de comunicação é principal causa de ações judiciais
De acordo com a doutora em Direitos Humanos e integrante da Sociedade Brasileira para a Qualidade do Cuidado e Segurança do Paciente (SOBRASP), Aline Albuquerque, a origem do problema está, em grande parte, na comunicação deficiente entre profissionais e pacientes.
“A formação dos profissionais de saúde no Brasil ainda é voltada para um modelo de paciente que não questionava ou buscava informações. O novo paciente é mais informado, e esse descompasso tem gerado um número crescente de ações judiciais”, explica.
Ela ressalta que a maior incidência de processos ocorre no sistema privado, reflexo de uma formação profissional que não acompanhou a mudança no perfil do paciente moderno, mais participativo e exigente.
“Nos Estados Unidos, 82% das ações judiciais decorrem de falhas na comunicação, e vemos a mesma tendência no Brasil. Não é despreparo, é falta de atualização para lidar com o paciente atual”, completa Aline.
“A saúde está doente”, avalia especialista
Para Aline Albuquerque, o aumento da judicialização é um sintoma da crise na qualidade do atendimento médico. Ela defende que a formação dos profissionais precisa priorizar a comunicação, o direito à informação e a participação do paciente nas decisões de tratamento.
Além disso, recomenda a adoção de protocolos de segurança mais rigorosos. “Esses números mostram que a saúde está doente. A judicialização virou o único caminho para muitos pacientes garantirem seus direitos”, afirma.
A pesquisadora também destaca a importância do prontuário médico, considerado um direito do paciente.
“As informações contidas nele são pessoais e devem estar acessíveis a qualquer momento, sem cobrança de taxas”, reforça.
Falhas estruturais e má gestão agravam o problema
O coordenador jurídico do Conselho de Medicina do RN, Klevelando Santos, aponta que muitos casos não decorrem de erro médico, mas de deficiências administrativas e estruturais.
“Os médicos acabam sendo o alvo mais visível de um sistema sobrecarregado, embora atuem em condições adversas”, avalia.
Segundo ele, a judicialização é reflexo da ineficiência estatal e da falta de investimento no sistema público de saúde.
“O aumento das ações também está ligado ao maior acesso da população à informação sobre seus direitos constitucionais à saúde”, acrescenta.
Acesso a tratamentos impulsiona judicialização no RN
A advogada Eveline Macena, presidente da Comissão de Direito à Saúde da OAB/RN e integrante do Comitê Estadual de Saúde do CNJ, explica que o aumento das ações judiciais está diretamente relacionado às dificuldades de acesso a medicamentos e procedimentos.
“No SUS, muitos pacientes só conseguem tratamentos de alto custo por meio da Justiça. Já no sistema privado, os planos de saúde frequentemente negam terapias e cirurgias caras por razões financeiras”, afirma.
Ela classifica o fenômeno como resultado de uma “carência estrutural” do sistema de saúde potiguar.
“Quando a judicialização se torna necessária, é porque o atendimento falhou. O paciente busca na Justiça aquilo que o hospital deveria oferecer”, pontua Eveline.
Falta de prevenção perpetua ciclo de falhas
A presidente da Comissão defende uma mudança cultural nas instituições de saúde, com foco em políticas preventivas. Segundo ela, o sistema gasta mais ao tratar doenças em estágios avançados do que ao investir em prevenção.
“Sem prevenção, a judicialização vai continuar. Muitos pacientes só procuram ajuda quando a doença já está grave, e isso encarece o tratamento e reduz a qualidade de vida”, conclui.
Eveline cita ainda a lentidão em procedimentos básicos, como fisioterapia e fonoaudiologia, cuja fila no SUS pode chegar a 17 anos.
“Esse é o retrato da carência no sistema. Enquanto esperam, muitos pacientes morrem ou têm a condição agravada”, alerta.
Com o aumento dos processos e a sobrecarga do sistema, o desafio para o Rio Grande do Norte é claro: garantir o direito à saúde sem depender da via judicial como último recurso.
BNews Natal